2009/10/04

Acróstico torto

Os universitários viajavam em pequenos grupos durante as férias de inverno. E naquela noite fria reuniram-se em volta da fogueira para as cantorias ao som do violão. Marcos não era muito bom nessa arte, mas arranhava alguma coisa, enquanto que Pedro, esse sim, era muito bom. O repertório de Marcos também não era dos melhores. Contudo faziam duos ou solos. Pedro e Marcos eram muito amigos e inseparáveis. Fizeram muitas das traquinagens da adolescência juntos, mas nesta viagem estavam em campos opostos. Eram três rapazes e quatro moças. Luiz e Carolina já namoravam há três anos. Ana Paula, Júlia e Flávia estavam sozinhas, mas quis o destino que Marcos e Pedro empreendessem uma disputa velada por Ana Paula. Ela era a única do grupo que não era universitária. Era professora primária. Foi aí que ele descobriu que Pedro tinha um ás na manga quando começou a tocar as musicas mais difíceis de Chico Buarque, de João Bosco e alguns blues. Marcos ficou admirado, pois nunca o tinha visto tocando aquelas músicas. Sentia que perderia a disputa se não fizesse algo, rápido, para superar Pedro. Ana Paula de tímida não tinha nada, mas também não era sapeca. O que mais lhe chamava a atenção era a sua beleza. Olhava para os dois com a mesma ternura angelical e não demonstrava o seu interesse particularmente por nenhum dos dois ou para os dois.

Na disputa, a cada investida, um olhava para o outro numa atitude de duelo e desafio. Ana Paula impassiva olhava para eles com a sua candura peculiar. Júlia e Flávia viviam para lá e para cá provendo o grupo de bebidas e tira-gostos. Luiz e Carolina pareciam sentir mais frio que os demais e se comprimiam em abraços entremeados de beijos apaixonados.

O duelo estava deixando Ana Paula cada vez mais excitada, sempre que percebia que aqueles cânticos se dirigiam a ela. Nessa altura ela demonstrava carinho para ambos com um certo charme feminino que provocava Marcos cada vez mais.

Aproveitando o intervalo em que comiam e bebiam alguma coisa, ele pegou um pedaço de papel e uma caneta e quase de uma vez escreveu:

Aqui reunidos em volta da fogueira
Nasce uma grande paixão que
Anima-se em meu peito

Palpitando de emoção,
Ardor e devoção.
Urge pois uma atitude
Lugar provável de
Amor e sedução.

vê-la tão só e desprotegida
acode num martirio
todo o fervor e a empolgação
desse acróstico torto.

Mal acabou de escrever entregou a Ana Paula, que começou a ler. Ele observava todos os seus movimentos quando percebeu uma lágrima escorrer por entre os olhos.

Marcos vibrava. Certamente ganhara a contenda, pensou. As lágrimas eram a demonstração inequívoca de uma paixão correspondida. Também nele surgiu uma pequena lágrima de merecimento por tal comoção. Lágrima que mal se pronunciava, logo interrompeu-se diante da tapa que ele levou. Dada de palma da mão aberta e com impulso de quem leva a mão lá atrás para voltar com toda a força.

Foi a tapa mais doída que recebeu em toda a sua vida. O deixou abatido por alguns instantes. Até o fogo parou de crepitar nos seus ouvidos. Parecia que ele seria encerrado numa masmorra, preso a ferros para só sair de lá depois de muito velhinho. Ela correu para um dos quartos com o papel na mão. O papel queimava- as mãos e a alma. Ele correu atrás dela na esperança de entender os motivos ou mudá-los.

Debruçada sobre o travesseiro chorava e soluçava. Ele olhava-a nesse estado de desamparo com as nádegas avolumadas pela posição, como uma oferenda. Isso aumentava, ainda mais, o seu ardor. Júlia e Flávia também acudiram. Xingavam e agrediam Marcos em cumplicidade com Ana Paula. Marcos tomou-a pelos ombros e virou com uma interrogação. O que houve? Pergunta que não chegou a fazer, pois ia tomar outra tapa que não se concretizou porque ele, instintivamente, segurou o seu pulso. Frustrada pela nova investida, ela rasgou o papel jogando-o ao chão e voltando a cara para o travesseiro em nova sessão de choro.

Júlia calmamente abaixou-se pegando o papel rasgado e retirou-se do quarto seguida por Flávia e por ele. Elas lhe lançaram um olhar que cheirava ódio e desprezo , tomando as dores da amiga.
Marcos retornou à fogueira com a cara mais bestificada que lhe acudiu. Pedro dedilhava um blues “Do nothing till you hear from me” (1) que, fez-se ouvir como se Ella Fitzgerald estivesse cantando.

Nunca sentiu tanto ódio em ouvir aquela música, como naquele momento. A cara de deboche de Pedro o irritou como nunca. Parecia dizer: eu não ganhei, mas você também não ganhou!

E nesse momento dedilhava “I cried for you” (2), olhando-o com escárnio e superioridade. Julia e Flavia, as inseparáveis, surgiram com sorrisos escandalosos. Traziam os pedaços colados com durex e repetiam em voz alta:

acode em meu ser
todo o fervor e a empolgação
desse acróstico torto.

Foi por causa do seu acróstico torto, disse apontando para Marcos. A gargalhada agora era generalizada e até Pedro parou de tocar para gargalhar também.

Marcos apenas balançou a cabeça, lado a lado: “o que eu faço com alguém que não sabe o que é um acróstico e muito menos torto?”

1-Não faça nada antes de me ouvir
2-Eu chorei por você

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas que burrinha essa professorinha! Só uma pergunta: ela é loura? he he he