Por Rogério Silva
O
bar bem que poderia ser chamado de Botequim João do Rio. Não é só por que fica
na Rua Paulo Barreto, no Rio de Janeiro, mas por que ali se reúnem pessoas que,
de certa forma, relembram o perfil de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos
Coelho Barreto, o João do Rio. Aquele que deu nome à rua. Ali não vão mulatos,
barrigudos e homossexuais como antigamente. Não. Isso ficaria óbvio demais!
Hoje vão pessoas de todos os tipos. E sinto revigorar, nos frequentadores
atuais, o espírito das primeiras décadas do século passado. Época em que,
dentre outros poetas, reuniam-se pessoas da estirpe de João do Rio, Emilio de
Meneses, Bastos Tigre e Olavo Bilac. Aqueles imortais das letras que iam aos
botequins ou à Confeitaria Colombo da rua Gonçalves Dias, no centro do Rio de
Janeiro, para gozar com a cara do mundo de seu tempo.
No
bar, ao final da manhã, começam a chegar, um a um, os que constituem a turma,
que mais parece ser uma turma de cabeça de papelão. O mais assíduo, e dos
primeiros a chegar, gosta de ficar em pé no balcão. Toma a cerveja devagar, não
come nada e fuma desbragadamente. Mas com sua fala mansa, conversa com um,
conversa com outro e, às vezes, acaba ficando até muito mais tarde. Mas o
principal horário dessa turma é o horário do almoço, o que obviamente incomoda,
não só o dono do local como também os comensais que ali vão apenas para
almoçar. Duas Brahma e a conta, pede um. Uma Skol e uma Caracu, mais um maço de
cigarros, pede outro. Há quem peça também uma “bobagem”, apelido da vodca, ou
uma batida, de maracujá ou limão. Uma latinha de cerveja é bebida só até a
metade e substituída por outra, por alguém, enquanto se lê o jornal. Um
torresminho ou jiló e peixe frito, ou qualquer dessas iguarias que só tem mesmo
no botequim e é sempre bem servido.
Mas
tem uma coisa que incomoda muito a quem fica em casa. As esposas têm sempre a
certeza de que no bar tem mulher. Senão por que os homens iriam querer ir lá
todos os dias? Vez por outra o celular de alguém toca. É a coleira eletrônica.
Um modo de elas manterem seus maridos sob controle. Que às vezes aparece mulher
por lá, aparece! Mas sabe como é! Mulher que freqüenta botequim é homem, não na
sua totalidade, mas em parte!
Certa
vez apareceu por lá uma bela jovem. Daquelas de deixar Honoré de Balzac de
queixo caído. Chegou de fininho, não falou com ninguém do grupo e tomou uma
cerveja na mais santa paz. Ninguém a perturbou e talvez por isso mesmo ela
decidisse voltar e fazer dali um lugar seguro para frequentar. Uma mulher
bonita, sozinha, no meio de tantos homens respeitadores, quem se atreveria a
perturbar? Não é mesmo? Acho que por isso mesmo foi ficando e passou a fazer
parte da confraria.
Mas
como acontece em qualquer grupamento de humanos, quando há homens e mulheres
juntos os ânimos se acirram e inicia-se uma velada competição por uma conquista
amorosa. Quem seria o felizardo? O mais jovem? O mais respeitador? O mais
sábio? Por incrível que pareça não houve um felizardo, mas houve um infeliz que
se viu tomado pela paixão. Suas rotinas e afetos, antes inabaláveis, ficaram
muito alterados. Por uma recomendação da mãe de santo teve de afastar-se do
grupo, até que a paixão se dissolvesse. Ficou à parte, num outro lugar, embora
próximo. Ao final de certo tempo tudo se resolveu e a paz voltou a reinar entre
os participantes do “escritório”.
A
formação profissional desses freqüentadores não é um dado muito relevante,
contudo por ali já passaram: médicos, professores, garçom, psicanalista,
promotor público, comerciantes, mecânicos, pescadores, caçadores e outros
fofoqueiros. O grande barato dessa pluralidade sempre foi a possibilidade de
trocas de conhecimentos, além de muitas piadas, brincadeiras e outros motivos
para muitas risadas.
Dá
pra ver que os membros dessa turma que já têm certa idade. Não só pela
predominância dos cabelos brancos, mas por que grande parte já está aposentada
e esse é um momento que precisa ser cultuado. Como em todo ócio, lá também tem
seus membros com suas cadeiras cativas e seus hábitos imperturbáveis. Uns são
engraçados e espirituosos, outros chatos e repetitivos, há também os teimosos
ou avarentos. Outros, ainda, gostam de contar piadas velhas ou desviam o
assunto só para chamar a atenção para si mesmos. Essas múltiplas qualidades se
misturam e se revezam dando resultados inusitados. Fantástico!
O
interessante é que tem sempre aquele que se acha o mais habilidoso em certos
assuntos que não fizeram parte dos seus afazeres cotidianos. Por isso mesmo se
acham mais espertos que os demais. Certa vez discutia-se sobre o modo de fazer
o angu à baiana. É com miúdos de boi ou de porco? Afirmações diversas. Boi,
porco. Com miúdos de porco faz sarapatel, grita um com ar de autoridade. Mas um
chato teimou que o angu à baiana era feito com miúdos de porco. Um outro que
não se deu por vencido, foi procurar no Google. Comprovou com mais de dez itens
pesquisados que angu à baiana é feito com miúdos de boi, enquanto o sarapatel é
que é feito com miúdos de porco. Além de fechar a questão dizendo o contrário,
o chato afirmou, então, que o Google estaria errado. Quem diria!... O Google
errado!...
Essas
coisas só acontecem mesmo num botequim! Onde você encontraria um mineiro que
ficou indignado, como se fosse uma afronta, quando lhe trouxeram um texto de
Carlos Drumonnd de Andrade, cujo título é Ser mineiro? E aquele que lê
diariamente a seção, cartas do leitor, de um jornal faccioso e acreditou, por
causa disso, saber tudo sobre política? Ainda há um outro que entende muito de
automóvel, mas o que gostaria mesmo é de ter sido policial. Ou aquele que não
bebe cerveja antes do almoço de jeito algum, mas, de vez em quando, traz uns
petiscos para quem está bebendo. Aliás, deliciosos. Equivocadas ou não, as
controvérsias políticas, sociais, futebolísticas ou sobre qualquer outro
assunto, costumam acalorar as discussões sem vencedores ou vencidos, deixando
sempre em cada um, a leve sensação de que ganhou a discussão.
Pensando
nestas coisas, eu gostaria que o botequim se chamasse Botequim João do Rio,
pois me faz lembrar um interessante conto de Paulo Barreto intitulado: O homem
de cabeça de papelão. No conto, Antenor, depois de tantas críticas a sua
cabeça, resolveu levá-la para o conserto e esta foi substituída por outra de
papelão, enquanto aquela seria consertada. Depois de certo tempo Antenor foi
buscá-la e ouviu do negociante um comovente depoimento sobre a beleza de sua
cabeça. Dizia ele que, em sua longa vida profissional, jamais encontrou um
aparelho igual, como perfeição, acabamento e precisão. O equilíbrio de todas as
vibrações! Considerada a placa sensível do tempo e das idéias. Nenhuma cabeça
poderia regular melhor que a dele. Não era uma cabeça qualquer. Era uma cabeça
de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours. Antenor já ia devolver a
cabeça de papelão e pegar a sua de volta. Contudo conteve-se. Pensando no
desconforto que a sua cabeça trazia e na serenidade que a cabeça de papelão
oferecia, ponderou que, profissionalmente, ele tinha razão. Mas, para ele, a
verdade era a dos outros, que sempre a consideraram desarranjada e não regulando
bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. O
comerciante que ficasse com aquela cabeça. Pois ele continuaria com a de
papelão. E, em vez de viver um Antenor, no País do Sol, que não conseguia ser
nada tendo a cabeça mais admirável e brilhante, viveu um Antenor simplório, que
conseguiu tudo com uma cabeça de papelão da qual ele tinha pleno domínio.
Como
nos tempos de João do Rio, no botequim de hoje, sempre se pode aprender alguma
coisa, do simplório ao conhecimento mais bem elaborado. Afinal botequim também
é cultura!
3 comentários:
Ao ler Botequim João do Rio senti -me personagem desta crônica.Fiquei deveras emocionada e distante deste mundo de trocas "afetivas",de conversas jogadas fora neste ambiente de bar.Sua capacidade, ou melhor, sua sensibilidade faz de você um bom contador de Histórias _um narrador participante.Saudades imensas.SElma
engraçado que eu freqüento um boteco aqui no meu bairro e nem sei aonde fica a rua Paulo Barreto, mas parece ser igualzinho ai.
botequim deve ser tudo igual mesmo, só que por aqui, de vez em quando sai briga feia.
Eu tenho sido questionado, por quem freqüenta o bar, como tendo me esquecido de fulano ou beltrano.
Não se trata de esquecimento e nem tenho nenhuma pretensão em atingir ninguém. Na verdade eu nos vejo, a todos, como Antenor que com sua cabeça de papelão tudo pode.
Finalizo esse comentário com Dona Emilia de Noel Rosa
Sai da frente
Dona Emília
Que o nosso bloco
Só tem gente de família
O nosso bloco vai a todas as batalhas
Só pra ganhar muitas medalhas.
E se houver muita concorrência
Eu trago o prêmio da violência.
O nosso bloco tem cordão de isolamento
Só pra barrar mau elemento
E dona Emilia anda despeitada
Por não entrar na batucada.
A dona Emilia foi pedir por compaixão
Pra penetrar no meu cordão
Mas eu não quero essa tagarela
Porque ela samba lá na favela.
Abs rogerio
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