Por Rogério Silva
Genivaldo acordou num belo dia com o sol a pino, estalando e queimando os seus miolos. O papelão onde dormia já estava bastante danificado e o cheiro de urina entranhava por suas narinas ou por qualquer outro lugar contaminando seus ossos e vísceras.
Àquela hora a quantidade de pessoas que passavam pela rua já era muito grande. Vinham de paletó e gravata, de saltos altos, elegantes ou nem tanto, em mangas de camisa arregaçadas, com pastas, bolsas descuidadas, alunos, ambulantes e outros transeuntes. Parecia uma procissão surgida de vários lugares. Alguém parava, olhava para seu relógio, olhava para um lado e para o outro e atravessava a rua para entrar numa das procissões que passavam no outro lado da rua.
Genivaldo (será que ele se lembra desse nome?) às vezes olhava para o seu pulso mecanicamente como se também quisesse saber as horas. Esse gesto talvez venha do tempo em que controlar a hora tinha para ele algum sentido. Hoje, simplesmente olhava, mas não saberia por quê. O sol estava muito forte e ele não tinha nada para fazer a não ser perambular em errância pelas ruas. Apresentava um aspecto, que de humano só sobrava o fato de andar
Ah! Se eu ainda tivesse cueca! Parecia pensar em silêncio numa certa cueca de seda grená, que ganhara de presente da sua Zefa. Tentava lembrar-se da mulher num misto de saudade ou amor ou sabe-se lá o que.
Andava ainda pensativo e distante quando encontrou uma guimba de cigarro ainda acesa, pegou-a e fumou até não poder mais segurar. Seu estômago roncava igual a uma cuíca de carnaval. Era preciso achar alguma coisa para comer. A esse chamado, instantânea e instintivamente, ele estendia a sua mão na direção das pessoas no intuito de receber alguns trocados. A maioria das pessoas olhava-no com desdém, nojo, pouco caso, ou ainda apertavam os seus passos quando estavam próximas dele. Havia até quem tapasse o nariz, provavelmente para não sentir o cheiro de budum acumulado por muitos dias sem banho. Essas atitudes nunca lhes passaram despercebidas. Porém ele não se perturbava muito, já estava acostumado com o seu próprio cheiro. Cheiro que já não sentia mais.
Nessa hora lhe vinha na memória, à lembrança dos tempos de escola. Lembrou de um colega de turma (como é mesmo o nome dele?) que tinha por hábito não tomar banho e vivia cheirando igual a um gambá. Naquela época ele era pobre, mas tinha orgulho em manter algum asseio.
Numa manhã de muito calor, o asfalto e o cimento das calçadas lhes queimavam os pés descalços. Carregava debaixo do braço um embrulho feito com um jornal, esfarrapado, onde se encontrava uma camisa de linho. Presente de sua dinda. Única coisa que lhe restava do mundo civilizado e que nunca usou. Ela estava muito suja e amarrotada, mas guardada para usar no dia em que voltaria para casa (?).
Continuava perambulando pela rua remexendo as casambinhas de lixo penduradas nos postes até que encontrou um pedaço de pão que ainda não estava totalmente mofado e comeu-o assim mesmo. Encontrou também algumas bananas meio passadas e amassadas que guardou num dos bolsos, ainda inteiros. Serviria para mais tarde quando tivesse mais fome. As vitrines mostravam coisas que ele desconhecia e não tinha a menor idéia para que servissem. Fazia tempo que estava na mendicância. Viu uma caixa parecida com uma televisão, conjugada com alguma coisa que para ele devia ser uma máquina de escrever. Na tela, os quadros mudavam de forma e de cor a todo instante. Mesmo sem saber do que se tratava, ele ficava ali, parado, como que capturado pelas imagens produzidas por aquele aparelho.
Na rua onde estava o barulho era infernal. Buzinas de carro, motores de veículos acelerados, músicas diferentes vindas das diversas lojas e gente falando. Tudo se misturava aos apitos dos guardas e aos berros dos camelôs. Certa vez teve sorte ao ver uma criança deixar cair no chão um saco quase cheio de pipocas. Enquanto catava, pipoca por pipoca, viu alguém que deveria ser a mãe da criança, dar-lhe piparotes em tom de reprovação enquanto a criança chorava copiosamente.
Naquele dia conseguiu acumular o suficiente para tomar um trago de pinga no bar do Seu Manoel, aonde ele ia sempre que tinha algum trocado. Ultimamente, Seu Manoel só lhe servia pinga em copo descartável, porque os fregueses logo o enxotavam do bar, o que fazia com que ele saísse do bar blasfemando qualquer coisa numa fala indecifrável.
Vez por outra ele pensava nos seus pais e irmãos. Tinha três irmãos quando veio para o Rio de Janeiro tentar a sorte. Mal se lembra da mãe e do irmão caçula, que se estivesse vivo talvez estivesse careca, puxou tio Lino. Genivaldo era mais velho do que ele quatro anos. Ao lembrar disso ele pensava, com tristeza, que a morte não queria saber dele e também ninguém queria. Continuava cuspindo sangue e o seu estômago ardia como se estivesse
Vez por outra lhe dá um aperto no peito e vem uma vontade de chorar, mas não consegue. Não tem lágrimas. Talvez gostasse que alguém lhe abraçasse, lhe falasse alguma coisa ou ao menos olhasse para ele: sem nojo, sem asco, com ternura, por que não? Nem mesmo os parecidos com ele gostavam de dividir o mesmo espaço. Talvez pensasse: eles não sentem o que eu sinto. Será que sou tão diferente assim?
Genivaldo só consegue ver a sua imagem quando dá de cara com uma vitrina ou poça d'água. Seus cabelos quase embranquecidos se encaracolaram e sua barba espessa toma metade de seu rosto. Às vezes cofiando, puxa um tufo de cabelos que apresentam um nó definitivo.
Anoitecendo a procissão, diminuiu. O que se viu então foram alguns gatos pingados. Seu corpo doía anunciando a necessidade de um cansaço de tanto fazer nada. De tanto catar guimba de cigarro, pedaço de pão e resto de sanduíche, de salgadinho, de refrigerante em lata, ou qualquer coisa que servisse para comer ou beber. Foi preciso procurar um trapo de pano, papelão, ou o que pudesse para forrar o chão debaixo de uma marquise para poder dormir. Seu corpo cansado e o sono foram suas únicas companhias naquele pedaço de calçada. Quem sabe naquela noite Genivaldo pode ao menos sonhar com o dia em que poderia vestir a sua camisa de linho e aí ter alguém para lhe abraçar e talvez até poder chorar.
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