2008/12/07

Sentença de servidão

Por Rogério Silva

Trata-se de resposta ao despacho anterior, o presente expediente que redijo com minha máquina de escrever pessoal. Minha santa e providencial Olivetti Lettera 82, portátil. Talvez até ela se orgulhe de colaborar gratuitamente com o serviço público brasileiro.

O que ela talvez não saiba, na sua limitada consciência de objeto sem anima, é que talvez esteja aqui lavrando sua sentença de servidão. Aqui provavelmente ela se efetiva no serviço público voluntário gratuito, para não dizer escravo. Este expediente trata, dentre outras reduções, de reduzir de duas para uma unidade a compra prevista no capitulo "máquina de escrever". E uma máquina só não vai dar conta de tanto serviço. Sobretudo se for mesmo uma máquina burocrática, que pegue as nove e largue as cinco, ao contrário da minha que é pau pra toda a hora. Não será usada só por mim, mas também por alguém que segue esse horário. De qualquer modo, trato de dizer à minha Lettera que já seria grande coisa se um dia aparecer mesmo esta escoteira companheira. Elas duas terão de dividir o trabalho. Pois estou há muitas noites e dias fazendo tudo o que posso para ter aqui uma máquina de escrever funcionária pública. Registrada, carimbada e fiscalizada. Estou pedindo verbalmente, oficiando, requerendo, cumprindo determinações e nada.

Ela não deixou de notar que não é só máquina de escrever que falta aqui. Desde que chegou tem padecido de uma solidão de ermitã. Olha para os lados, coitada, e não vê qualquer companheiro com anima ou sem anima, alem de mim. E nem sequer tem a companhia desse ser hibrido, o telefone, que apesar de ser portador de vozes humanas é cheio de vontades e só fala quando quer e bem entende. Ela sabe apenas que, usado pelos funcionários que cuidam da obra deste edifício, existe um. Mas daqui pra lá são quase cem metros. Por mais alto que ele grite não poderá superar as muitas paredes do prédio e a ruidosa presença dos ônibus que passam pela rua para dar um pouco de calor inumano à pobre Olivetti.

Será que Deus, além de brasileiro, funcionário público possui também o único cargo mais elevado da repartição? Porque eu preciso me pegar com alguém para a salvação do Teatro Machado de Assis. Porque tudo que estava pedido e parcimoniosamente previsto no expediente inaugural deste processo eram e continuam indispensáveis para o teatro funcionar. Qualquer redução feita, o que se estará propondo é a abertura de um hospital sem leitos, sem enfermeiros, ou de uma escola sem carteiras e professores

Me pedem que atenda a um despacho que chega a mim rodeado de mistério. Não falo de qualquer dificuldade de entender o sentido profundo de um texto cifrado. Falo de um puro e simples “conforme entendimentos”. Entendimentos dos quais fui privado.

Cheio da boa vontade de ver até onde é possível ir para a salvação das almas públicas, ou das almas privadas temporariamente públicas, peguei o documento original e abreviei, sobretudo, o prazo dos serviços, que são indispensáveis contratarem. E esta é a principal redução que consegui fazer no total do valor a ser gasto. Valor, por sinal, fixado não por mim, mas por quem agora me pede que reduza.

Quero dar um exemplo do que significa esta redução de prazos. O Teatro tem cinco sistemas de elevadores: o elevador do fosso da orquestra, o monta-carga que leva do palco ao porão, o elevador da cortina corta-fogo, o sistema de suspensão das varas do urdimento e o elevador que leva do palco aos camarins. Todos estes sistemas dependem de manutenção especializada e a própria entrega dos serviços de instalação está condicionada à contratação desta manutenção. Ao reduzir de seis ou mais meses para três, no máximo quatro meses, o prazo dos contratos de manutenção, é preciso estar consciente de que é necessário imediatamente prorrogar estes contratos, sob pena de abrir o teatro para fechar em seguida.

Posso dar uma pequena idéia do que significa este atraso. Até a pouco trabalhei em lugares diferentes do teatro: o foyer, algum corredor, um camarim inacabado, no meio da sujeira própria da obra, poeira, pedaços de fios, madeiras, chão forrado de plástico, etc. Mas há três semanas está quase pronta a sala de administração e pude me transferir para lá. Como não tem aqui nenhum funcionário de limpeza, nenhuma vassoura, e apesar de eu me encarregar de esvaziar cinzeiros, jogar fora garrafas pet, evitar papéis, etc.

Talvez existam outras providências que já deveriam ter sido tomadas. Será inteiramente impossível que o teatro funcione sem um sistema de intercomunicação: a cabine de luz, onde fica o operador, está acima da galeria e a ordem mais simples, para começar o espetáculo, por exemplo, não tem como ser transmitida do palco, ou da bilheteria, ou da portaria, ou da administração. O mesmo operador não tem como se comunicar com seu auxiliar, na sala de dimmers, situada no teto acima da platéia. O contra-regra terá que percorrer cinco andares de camarins para convocar os atores num espetáculo de elenco numeroso. A montagem de luz será uma operação de gritos entre o operador, seguidores, iluminador, diretor, todos em lugares diferentes e distantes. Como a com para e instalação de intercomunicadores estão previstas neste expediente não sei que milagre fará com que isso aconteça antes de inaugurar o teatro, se a obra terminar nos próximos trinta, quarenta dias.

Cumprindo o solicitado, encaminho o expediente com as reduções possíveis, na maioria reduções de tempo de contratação de serviços. Além delas, outras pequenas economias, reduzindo a compra de máquinas de escrever de duas para uma, convoca definitivamente esta paciente Olivetti Lettera, em que agora acabo de escrever este despacho, para o trabalho escravo. O que, no Brasil, e apesar da princesa não é novidade.

Diretor do Teatro Machado de Assis

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